Há algum tempo fui convidada a falar em um encontro comunitário de saúde mental. O tema proposto era de como fazer de uma situação difícil e desafiadora uma forma de crescimento. Os antigos tinham um ditado: “Se lhe derem um limão, faça uma limonada”. E os ingleses tem uma expressão que vai no mesmo sentido: “To make the best from a bad job”. Que eu entendo como ser capaz de fazer o melhor negócio possível de toda situação desfavorável.
É um grande desafio para nosso desejo de inércia e facilidade, os grandes vilões de uma vida saudável, enfrentarmos coisas de que não gostamos. Que aparecem sem avisar, que nos afrontam e que gostaríamos de fazer desaparecer. Pretendo retomar algumas ideias que desenvolvi naquela ocasião.

Há algum tempo, uma professora de alunos do ensino médio, foi procurada por uma jovem que tendo se mudado para aquela cidade, perguntou se poderia continuar seus estudos com ela. Só que esta jovem precisava de muletas para andar. E não havia na escola adaptação para deficientes. Era uma escola sem grandes recursos. Esta professora estava tendo muitos problemas com sua classe. Os alunos estavam extremamente agitados, desatentos e ela quase não conseguia ser ouvida. Ficou preocupada em acrescentar mais um problema aos que ela já enfrentava. Mas sentiu que era seu dever dar uma oportunidade para a menina e cedeu ao seu pedido.
No princípio, foi um transtorno! A menina precisava de ajuda para sentar-se, para ir ao banheiro, para ir embora. A desorganização foi total. Entretanto, pouco a pouco, um sentimento de solidariedade invadiu a sala. Os próprios alunos revezavam-se para ajudar a colega. A gratidão da nova aluna contagiou a todos. A classe integrou-se de uma nova maneira e, surpreendentemente, todos começaram a participar das aulas. O desejo de ajudar deu uma nova dimensão ao grupo.
Soube também de um casal cujo filho nasceu com dificuldades motoras e precisava de ajuda para locomover-se. Isto trouxe a estes pais um problema: como adaptar a criança às características da casa, do carro, do banheiro, do seu quarto. Sentiram-se muito desanimados. Mas decidiram enfrentar os desafios. Só que, ao se dedicarem a ajudar este filho, foram percebendo que a cada passo que davam para ajuda-lo, eles foram transformando a sua vida e passaram a ter muito mais respeito um pelo outro, assim como pelo filho. Perceberam que espaço pode ser ampliado, adaptado, e que o desejo de ajudar os transformara. Que o filho de certa forma chegara como um estrangeiro. E como estrangeiro, tinha outras necessidades, sua maneira de ser era desestabilizadora e os obrigava a mudar suas perspectivas. E isto lhes trouxe crescimento emocional, com aumento de recursos para enfrentar a vida e torna-la mais rica e prazerosa.
O que quero dizer com estes dois exemplos?
Que quando uma dificuldade, seja familiar, no trabalho, não for vista apenas como uma coisa ruim que não devia acontecer, tudo pode servir como fonte de crescimento. Ter um filho que escolheu usar drogas ao invés de pedir ajuda, ou que está passando por uma crise emocional grave, ou que não consegue assumir responsabilidades é algo muito difícil, que traz sofrimento, revolta, vontade de mandá-lo para longe de casa para ficar livre da dor.
Mas existe uma outra forma de viver esta situação tão desafiadora. É quando nós conseguimos nos perguntar: o que é possível fazer? Estará tudo perdido? Como entender esta forma tão destrutiva de pedir ajuda?
Porque ao introduzir estas reflexões dentro de você tudo muda. Você verá que é possível ir ao seu encontro, mesmo que ele inicialmente o afaste é possível de repente descobrir do que ele precisa, o que está sendo vivenciado por ele como insuportável. Surge um espaço de aprendizado. Podemos aprender como ajudar. E, de repente, saídas começam a ser vislumbradas. O amadurecimento cresce, juntamente com a tolerância. Quando a família acorda para a disponibilidade, decide que algo pode ser feito de forma construtiva, o sofrimento torna-se tolerável, a esperança brota e fortifica, enfim, uma nova vida começa.
É inegável que a destrutividade existe. Basta olhar à nossa volta, basta vermos as notícias, e veremos como o homem ainda não desenvolveu capacidade de amar. Ele permanece preso em seu narcisismo amplificado pelas frustrações. As frustrações que necessariamente acompanham toda vida humana. E se um filho se atira nos vícios, ficamos achando que seu objetivo é nos tornar infelizes e não que ele está pedindo socorro da forma mais desastrada que encontrou. Mas se conseguimos entrever o pedido de socorro, uma transformação fundamental pode começar a acontecer. Poderemos perceber que aquele ser que se destrói está sem recursos para enfrentar a vida, e nós podemos sutilmente, de forma sagaz, introduzir inícios de reflexão onde só estava existindo caos e atuação. E, pouco a pouco, nosso empenho se torna contagiante, desenvolvemos capacidade de ajudar suas partes infantis destroçadas pelo desamparo a encontrar trilhas no meio da floresta escura. Não existe um caminhar fácil pela vida. Guimarães Rosa nos adverte: “Viver é perigoso”. A questão é que fugir da luta é mais perigoso ainda.
É verdade que muitas vezes a situação parece sem esperança e sem saída. E às vezes pode chegar a ser. Ver num filho o olhar da morte, ver no marido ou na esposa o total desalento pode trazer um enorme sentimento de impotência, de incapacidade de ajudá-los. É preciso vencer este sentimento. É preciso acreditar que existe uma forma de atingir o coração do outro e fazê-lo ter também fé. O fardo só se torna insuportável se não existir espaço para acolhimento e afeto. Ou se a desestruturação do outro acabar por destruir seu equilíbrio e sua força amorosa e cuidadora.
Mas se não desistimos, se resgatamos nossas energias mais soterradas, menos exploradas, e reconquistamos nossa capacidade heroica de luta, um novo panorama vai se descortinar diante de nossos olhos. Passamos a ver novas perspectivas, aprendemos o nunca havíamos sonhado aprender. E nos desenvolvemos. Crescer é algo extremamente prazeroso. Dá sentido a todo trabalho e a todo sofrimento. Crescer dá cor e encanto a tudo o que fazemos. Ainda que o preço seja alto, o resultado paga mil vezes o investimento. Só que para isso é preciso ter “engenho e arte”. Coisa a ser desenvolvida em uma análise, se possível. A arte de não desistir, de continuar procurando o contato com o outro. Sem críticas, sem violência, sem queixumes. Simplesmente buscar o olhar do outro. Tornar-se disponível.
É preciso conseguir aproximar-se de uma pessoa submersa na dor e no sofrimento. Aí algo pode acontecer que dará sentido ao encontro.
Finalizando, a vida é para ser vivida com alegria, com bem-estar físico e mental. Mas a dor está aí e não há como fugir dela. Quando a enfrentamos, damos de novo espaço para a alegria. Parece uma contradição, mas é assim.
Quando nos abrimos com toda riqueza de emoções de que somos capazes com o objetivo de ajudar o outro, o próximo, o filho, não importa, a dor desaparece e somos tomados pelos sentimentos de conforto e paz.
Ribeirão Preto, 28 de agosto de 2020